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Foto do escritorGabriel Santiago

Um Morrer Imaginal

Atualizado: 31 de ago. de 2018



Quando vemos o verbo "morrer"... qual a primeira coisa que pensamos? Muitos provavelmente pensarão em termos biológicos, um organismo do qual suas funções orgânicas deixaram de exercer suas atividades, levando assim ao cessar do funcionamento deste determinado organismo. Uma segunda maneira de compreender o verbo proposto seria entendendo-o em uma função similar, entretanto, como analogia a primeira apresentada, como quando falamos "meu celular morreu". Certo, agora vamos um pouco mais além.

Podemos também pensar no mesmo verbo a partir da seguinte situação: você encontrava-se em uma relação com uma pessoa, e, por uma pluralidade de motivos aos quais qualquer um pode imaginar, este chega a um fim, e esta pessoa te deixa. E o que muitos vão dizer quando isto acontecer? Provavelmente dirá "uma parte de mim morreu". Ótimo, chegamos agora onde eu pretendia, pois aqui, a morte perde seu caráter orgânico, temos agora uma morte metafórica, uma morte imaginal, mas não por isso menos real.

Em nosso dia-a-dia, em uma sociedade onde o Ego Heróico é aclamado, convidado cada vez mais a puxar sua espada e lutar, acabamos deixando um rastro de corpos para trás. Muitos irão deixar estes corpos lá, talvez empurrando-os para uma trincheira coletiva, numa esperança de que lá apodreçam e não incomodem mais. Mas a Psique é fã de George Romero nessas horas, e esses corpos serão reanimados, e virão atrás do Eu em busca de Alma, a Alma que lhes foi renegada, a Alma que lhes foi usurpada, e agora o Eu pode continuar lutando, enfrentando hordas de corpos-morto-vivos… mas até onde o Eu pode aguentar, antes de sucumbir ao clamor de fazer alma?

Quando sucumbe, é devorado, o Eu é destroçado em pedaços, entranhas, sangue-rubro-vital espalhado para todo lado. Agora um Eu está no Hades, no Duat, cercado de entidades mortas, de outros Eu mortos. Um reino onde os valores solares ao qual um Eu estava habituado, de nada mais valem. Agora ficamos trancados em nossos quartos, deitados em nossas camas, cortinas fechadas, e não sentimos mais fome, pois mortos não se alimentam destas substâncias.

Agora vamos voltar um pouco, antes de corpos se acumularem, antes da carnificina Ego-Heróica, voltemos ao primeiro corpo abatido. Este corpo foi ceifado, mas não significa que não há o que fazer.

Antes que este se reanime em busca de sua carne, cortando-lhe os pulsos, bebendo de seu sangue; volte e acolha-o, passe seus braços sobre ele e caminhe junto em direção ao mundo inferior. Este corpo será sim reanimado, mas não trará a ferocidade prévia, não mais abrirá seu crânio em busca de alimentar-se de seus pensamentos, pois agora vocês caminham juntos, assim como entram neste reino sombrio juntos, compreendendo este obscuro terreno de uma nova maneira.

Agora, quando retornamos, não mais lutamos contra corpos reanimados, mas perguntamos "Quem está aí?", "Quem clama por Alma?", e vamos ao seu encontro, reconhecemos sua existência, por mais vil e grotesca que possa-nos parecer, mas respeitamo-los e o ouvimos. Precisamos e vamos morrer, muitos dentro de nós, por diversas vezes. Mas agora caminhamos ao Sol com cautela, assim como somos recebidos pela Lua com cordialidade.

"O mundo das trevas é um reino apenas de psique, um reino puramente psíquico. O que lá encontramos é alma." ¹

 

Gabriel Santiago

Estudante de Psicologia

 

¹ HILLMAN, James. O sonho e o mundo das trevas. Petrópolis: Vozes, 2013.

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