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A tensão entre os opostos e individuação em "O Castelo Animado"



Um dos maiores títulos de sucesso do Studio Ghibli, O castelo Animado foi lançado em 2004 e é baseado na obra Howl's Moving Castle (1986) da autora inglesa Diana Wynne Jones. A história se passa em um mundo fantástico no qual vive a protagonista, Sophie, uma jovem de cabelos castanhos extremamente responsável que herdou a chapelaria de seu pai em meio a um cenário de guerra.

Ao ser assediada por alguns soldados e salva pelo intrigante e sedutor mago Howl, a jovem Sophie é repentinamente amaldiçoada pela Bruxa das Terras Abandonadas, que a transforma em uma senhora de 90 anos, por motivos que ela desconhece. Desesperada e com medo de que sua família não a reconheça, Sophie embarca numa odisseia em busca do Castelo Andante, onde reside o misterioso feiticeiro Howl, que apesar de ser temido por devorar o coração das moças do povoado, supostamente poderá ajudá-la a reverter esta maldição.

Já transformada em idosa e caminhando em busca do Castelo de Howl, Sophie cruza com um espantalho, o qual apelida de Cabeça de Nabo, que acaba a ajudando a entrar no castelo. Já dentro, Sophie se depara com Cálcifer, um demônio do fogo que comanda todas as funções do castelo e por conta de um feitiço, está preso às entranhas da construção, sendo a existência de ambos codependentes. Ao interagirem, Sophie e Cálcifer acordam um pacto: caso ela consiga decifrar a ligação que Cálcifer possui com Howl, ele ajudará a se livrar da maldição lançada pela Bruxa das Terras Abandonadas. Isto posto, a trama passa a se desenrolar com Sophie oscilando sua aparência entre juventude e velhice.

Repleta de significados, imagens e mitologemas assim como as demais obras Ghibli, O castelo animado não rompe o padrão e apresenta diversas possibilidades de análise. Visando honrar não apenas a obra, mas também o evento presencial de filme-análise realizado pela Liga Junguiana em (26/07/2023), ao longo do post irei propor algumas reflexões sob a perspectiva da Psicologia Analítica


O PROCESSO DE INDIVIDUAÇÃO E O RESGATE DE SI-MESMO

Como mulher, é impossível não focalizar a primeira análise na protagonista Sophie. Para os amantes de Ghibli e aqueles que estão adentrando no universo encantador de Hayao Miyasaki, destaquemos: talvez um dos principais brilhos e atravessamentos que as obras Ghibli nos causam se dão devido a construção de representações femininas profundas e sempre complexas. Ao passo que Chihiro (A viagem de Chihiro, 2001) e Kiki (Serviço de entregas da Kiki, 1989) são protagonistas que nos cativam enquanto personagens femininas que se encontram nos desafios da transição entre a infância e adolescência, e, portanto, estão tentando encontrar seus lugares e propósitos no mundo, em O Castelo Animado temos uma protagonista que faz justamente o movimento contrário. Ao longo da jornada de Sophie, vemos uma personagem tentando descobrir suas reais vontades e desejos e, sobretudo, tentando acolhê-los e aceitar quem ela é.

Desde que o feitiço é lançado em Sophie, nos deparamos durante todo o filme com ela oscilando entre juventude e velhice, por vezes ficando mesclada entre ambos, aspectos os quais observamos por meio do seu cabelo, postura e marcas de expressão.

Para a Psicologia Analítica, o desenvolvimento psicológico se estende por toda a vida do indivíduo, sendo este um longo processo o qual denomina-se individuação. Esse percurso tem como guia o Self (Si-mesmo), que expressa a totalidade e unidade da psique (JUNG, 1991) e, gradativamente, se revela no ego e possibilita a plena expressão e manifestação da personalidade. Em outras palavras, o sujeito torna-se capaz de gradualmente tomar consciência de suas potencialidades (STEIN, 2012).

Para Jung, a psique sempre busca manter-se em equilíbrio, utilizando-se de compensações entre o inconsciente e consciente. Ou seja, a psique é um sistema auto-regulador. Quando há certa unilateralidade na consciência, o oposto desta está contida e latente no inconsciente. Enquanto na primeira metade do desenvolvimento psíquico o indivíduo busca se estabelecer no mundo, na segunda metade existe um movimento de integração dos aspectos que acabaram por ser negligenciados ao longo da história de vida (JUNG, 2009).

Retornando a Sophie, percebemos uma jovem extremamente responsável, organizada e racional, que dedica intensamente seus dias à chapelaria do falecido genitor, fazendo lindos chapéus para seus clientes para além do horário de trabalho. Ao ser questionada pela sua irmã, Lettie, sobre o que Sophie de fato deseja para si, a vemos incapaz de responder tal pergunta. Enquanto não parece haver um real martírio por cuidar da chapelaria, não vemos satisfação e realização em Sophie, tão pouco uma segurança sobre sua aparência, a qual constantemente lança autocríticas.

De acordo com Jung (2008, p. 219), “algumas vezes tudo parece bem externamente, mas no seu íntimo a pessoa está sofrendo um tédio mortal que torna tudo vazio e sem sentido. (...) Poderia-se dizer que o encontro inicial com o Self lança uma sombra sobre o futuro”. Ou seja, ao se identificar integralmente com a responsabilidade de gerenciar a chapelaria paterna, vemos o sacrifício das vontades próprias de Sophie, que conforme observado na cena com sua irmã, tais anseios sequer emergem na consciência.

A partir da maldição lançada, o filme nos convida a sentir curiosidade pelo contraste entre Sophie na sua versão jovem e idosa. Enquanto jovem, Sophie era séria e fechada, já enquanto idosa, Sophie se permite - mesmo com as limitações físicas do novo corpo - viver espontaneamente coisas que jamais havia se permitido antes. Como jovem, a vemos evitando espelhos, sempre usando o chapéu mais simples - mesmo tendo habilidade para produzir os chapéus mais elaborados possíveis - e usando-o para esconder seu rosto. Como idosa, ela constantemente se depara com sua nova aparência, chegando a verbalizar “O bom de estar velha é que não se tem nada a perder”.



Como o processo de individuação não ocorre isoladamente, mas sim coletivamente e no contato com o outro (JUNG, 2009), é deslumbrante perceber que para além do romance estabelecido com Howl, o relacionamento autêntico com os demais personagens situados no Castelo e fora dele auxiliam Sophie em seu desenvolvimento pessoal. Nos momentos de insegurança, recorrentemente a encontramos em um estado mais envelhecido, já nos momentos que a vemos tomando novas atitudes e agindo de maneira mais espontânea e menos rígida, bem distintas da Sophie pré-maldição, a vemos cada vez mais jovem.

Como bem disse Cálcifer: “O coração é um fardo pesado”. Permitir sentir e acolher os próprios anseios, opiniões, desejos, medos, angústias, amor, ódio, etc, não é uma tarefa fácil e muito menos linear. Mas, talvez, bancar tal fardo seja uma das chaves para trilhar o próprio processo de individuação. É na constante ambivalência entre insegurança e segurança que podemos acompanhar e nos emocionar com o desenvolvimento não só de Sophie, mas também de Howl e da Bruxa das Terras Abandonadas.

Chegando no final desta primeira análise, você percebeu que não foi falado sobre a quebra da maldição? Pois é. Em nenhum momento a trama menciona explicitamente o que de fato era este feitiço, e se ele foi realmente quebrado. Nos é entregue apenas o óbvio: Sophie virou uma idosa de 90 anos. Porém, podemos pensar por duas vias - que por ciúmes, A Bruxa lançou a maldição para Sophie não ter chances de se envolver amorosamente com Howl; ou, que o encantamento externaliza como Sophie de fato se sentia e percebia.

Inclusive, a partir das últimas cenas do filme, em que nos deparamos com Sophie jovem, mas com o cabelo curto e ainda branco, vestindo uma roupa e chapéu mais elaborado, vemos uma protagonista que carrega em sua nova aparência características que espelham seu crescimento. O cabelo permanecer branco revela que houve aprendizado e desenvolvimento enquanto estava na forma de uma idosa. Apesar de quase ter voltado integralmente a sua forma jovem “original”, seria impossível Sophie voltar a ser como era antes, dado tudo o que vivenciou.


Conforme mencionado pelos personagens: todos nós temos de lidar com as nossas próprias maldições!


Frente o elucidado até aqui, tire suas conclusões também! ;)



A TENSÃO ARQUETÍPICA ENTRE OS OPOSTOS: PUER-SENEX

Se achou que não falaríamos do Howl, você se enganou! Continuemos a(s) análise(s).


"O mundo no qual penetramos pelo nascimento é brutal, cruel e, ao mesmo tempo, de uma beleza divina. Achar que a vida tem ou não sentido é uma questão de temperamento. [...] As duas alternativas são provavelmente verdadeiras: a vida tem e não tem sentido, ou então possui e não possui significado. Espero ansiosamente que o sentido prevaleça e ganhe a batalha". (Jung, 1986, p.148)


Que Sophie é(ra) extremamente responsável, séria e racional, já entendemos anteriormente. E Howl? Brincalhão, sedutor, irresponsável, heróico, extravagante…

Boa parte das animações Ghilbi possuem como contexto a guerra e a crítica a tais conflitos, dado a cultura e história japonesa. Aqui em O Castelo Animado não é diferente, e também reside um vasto campo de análise, mas, me atentarei ao cenário de guerra em seu sentido psicológico, recortando-o na dinâmica entre Howl e Sophie, que devido aos conflitos externos e internos à relação deles, se transformam.

Enquanto Sophie parece representar na obra o arquétipo Senex, antitético do Puer aeternus, Howl e sua fama de devorador de mulheres nos remete não só a aspectos herméticos e dionisíacos, mas também super pueris. Dada a irresponsabilidade, impaciência e imediatismo do Puer, sua polaridade negativa manifesta-se pela dificuldade e até mesmo resistência em relacionar-se com o tempo, não se fixando a lugar nenhum e e sempre em constante movimentação.

Não estranhamente, Howl reside em um castelo andante e vive modificando a cor de seus cabelos, alegando comicamente em uma das cenas mais divertidas: “Não vejo razão em viver se eu não for bonito” (enquanto Sophie está vivenciando toda a angústia por ter se tornado uma idosa de 90 anos rs). Além disso, vemos Howl pedindo para Sophie se passar por sua mãe e a enviando em seu lugar para uma reunião na corte com a sua ex-mestre, temendo se encontrar com uma figura de autoridade e bancar as próprias responsabilidades.


Jung não abordou amplamente a relação puer-et-senex, entretanto, há em sua obra arquétipos que são associados a eles, tais como Velho Sábio (Senex) e a Criança-Divina e o Trickster (Puer). Já James Hillman (1926) e Marie-Louise Von Franz (1992), exploraram mais esta temática. Enquanto Hillman compreende puer e senex como um só arquétipo, Von Franz entende o puer aeternus por meio da relação com o complexo materno.

Von Franz (1992) compreende Puer aeternus a um deus-criança, significando "juventude eterna". Para Von Franz (1992), o comportamento pueril pode ser percebido em indivíduos que apesar de não serem, comportam-se de maneira similar a adolescentes, e costumam possuir alguma dependência da imagem materna (lembremos de Sophie oferecendo leite para Howl após não conseguir elaborar a frustração em se sentir "feio"). Não raro, existe algo que as impede de se ligar ou de se prender a qualquer coisa, existindo uma constante recusa interior de vincular-se ao presente. Logo, responsabilizar-se com a própria vida e comprometer-se com pessoas e/ou afazeres, torna-se, portanto, uma tarefa difícil. Dessa forma, podemos olhar com outros olhos sua fama entre as mulheres, e, não raro, vemos Howl assumindo vários nomes e personalidades para ser contratado como feiticeiro, visando não comprometer sua real identidade com nenhum de seus clientes, muito menos com a guerra.

Apesar de notarmos tais aspectos no personagem de Howl, vale ressaltar que não há somente características negativas no puer aeternus, sendo sua polaridade positiva representada pela espontaneidade, adaptabilidade, mudança, inovação, liberdade, juventude, etc… Aspectos os quais residem no inconsciente de Sophie, tal como os aspectos conscientes dela carecem nas atitudes egóicas de Howl.

Mediante a articulação, podemos pensar que de maneiras opostas, ambos os personagens principais iniciam a história sendo atravessados por crises e conflitos internos, e que ao cruzarem seus caminhos, as polaridades puer e senex de ambos acabam relacionando-se e, portanto, conferindo sentido e significado à vida dos protagonistas.

Dado isso, não podia deixar de encerrar a reflexão com a bela colocação de Jung em “A prática da psicoterapia” (2013):


“O encontro de duas personalidades é como a mistura de duas substâncias químicas diferentes: no caso de se dar uma reação, ambas se transformam.”



REFERÊNCIAS

HILLMAN, J. Um Aspecto do Presente Histórico e Psicológico. In: O Livro do Puer: Ensaios Sobre o Arquétipo do Puer Aeternus. 2ª edição. Tradução de Gustavo Barcellos. São Paulo: Paulus, 1998

JUNG, C. G. A prática da psicoterapia. 16. ed. Petrópolis: Vozes, 2013.

__________. Memórias, Sonhos e Reflexões. Tradução de Dora Ferreira da Silva. Editora Nova Fronteira, 1986, p.141 -150.

__________. Psicologia e alquimia. 4. ed. Petrópolis: Vozes, 1991.

__________. Tipos psicológicos. Petrópolis: Vozes, 2009. (Obras Completas, v.6).

__________. O homem e seus símbolos. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008.

STEIN, M. Jung: o mapa da alma. 9. ed. São Paulo: Cultrix, 2012.

VON FRANZ, M. L. - Puer Aeternus: A Luta do Adulto Contra o Paraíso da Infância. Tradução de Jane Maria Corrêa. Edições Paulinas, 1992


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