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Setembro Amarelado: um olhar alquímico sobre o suicídio.

Atualizado: 17 de set. de 2020

A taxa de suicídio aumentou no Brasil.

O Brasil anda na contramão diante do mundo sobre a luta constante pela preservação da vida, enquanto o índice de suicídios cai mundialmente, aqui cresceu em 7% de 2010 a 2016. (Fonte: Organização Mundial da Saúde).


Mas espera, isso ainda é um texto sobre psicologia.

Como psicólogo, lanço a pergunta: qual a necessidade da psique brasileira em vivenciar a morte de forma tão literal?

Fim da linha. (Qual linha?)

Eu queria fazer um texto sobre a morte em geral, falar como é experienciada e simbolizada em várias culturas, mas o fato dos suicídios brasileiros terem aumentado em oposto do restante do mundo num geral me instigou. Como o brasileiro vivencia a sua morte? Qual espaço temos para ela na nossa psique do cotidiano?


O psicólogo James Hillman afirmava que a verdade da alma (psiquê) se revelava na psicopatologia (pathos), que é justamente aquilo que vemos como torpe, doentio, desajustado, excêntrico que acusa a verdade psíquica. (Recomendo a leitura do texto "Patologizar").


Se a alma reencontra a si mesma em sua patologia, o que tais ideações mortíferas então buscam expressar em nossa psique? Diante de tamanha literalização constante, levando a "morte" ao pé da letra, a primeira coisa que podemos afirmar é que a morte, não enquanto vivência literal, mas sim vivência metafórica, simbólica, psíquica não está encontrando espaço de expressão.

"Ninguém realmente pode dizer que se defrontou com a vida se não estiver disposto a se atracar com a morte." (Hillman, 2011, pg. 23)

O brasileiro, tão preocupado com o "bem viver" que se esquece da contraparte, o "bom morrer". Diante de tamanha ostentação da vida e do viver, o ostentar de conquistas, vitórias, saúde, beleza, vitalidade, resoluções e respostas, o que houve com as perdas, as derrotas, a doença, a feiura, a decadência, os problemas e os questionamentos? Tudo isso ainda se faz presente, de forma renegada, estrangeira, patologizada. Não é sobre gostar, apreciar ou não tais aspectos psíquicos, mas reconhecer sua validez como experiência de alma, pois eles já existem. Gostemos ou não, morremos todos os dias, matamos todos os dias, um leão por dia como diz o ditado. Morremos para poder viver. A morte e a vida são duas possibilidades psíquicas que merecem, igualmente, reconhecimento e espaço.


E onde encontramos a morte psicológica? Em todo lugar, a todo momento. A raiva morre para dar espaço à tranquilidade, o egoísmo para a doação, a ingenuidade para a sabedoria, a jovialidade para a velhice, o ímpeto para a temperança, a rigidez pela moleza, e o inverso também vale. Não é uma exclusão de uma coisa por outra, mas sim um morrer para se permitir viver outros aspectos da psique, outros lados da pluralidade natural da alma, sem exclusões necessariamente. A raiva não deixa de existir, ela apenas dá espaço para a calma, ou para qualquer outro aspecto psíquico, seja alegria, tristeza, melancolia, empatia ou apatia. O morrer é a metáfora da transformação, é aquilo que gera mudanças, dá fim e cria começo.

"Eu vejo luz na escuridão"

Naturalmente, se estaremos problematizando, contemplando, refletindo e aprofundando a vida, estaremos fazendo o mesmo para com a morte, e dada a escassez de expressões psíquicas de morte e/ou morrer, o que acaba nos restando é a fantasia suicida.

"Se quisermos caminhar em direção ao autoconhecimento e à experiência da realidade, o primeiro passo a ser dado consiste numa indagação sobre o suicídio." (Hillman, pg. 23, 2011)

Portanto, a ideação suicida, a fantasia de morte são também vivências autênticas da alma humana, que precisam ser dadas o seu devido espaço, para serem acolhidas, ouvidas, contempladas, aprofundadas. Como podemos perceber esse processo de forma mais simbólica, dando esse espaço do suicídio como metáfora? Podemos dar várias respostas, mas nesse texto pretendo correlacionar o suicídio com a proposta do mês de setembro, o mês da prevenção mundial do suicídio e sua cor amarela. Vamos para um dos pilares da psicologia analítica: a alquimia.


Não pretendo me debruçar sob os detalhes da alquimia, tampouco o sentido que se tem para a psicologia, pois demandaria um texto só para isso e ainda não seria o suficiente. Aqui o interessante é se manter nas ideias essenciais sobre a mesma, que fala sobre transformação, tanto do material quanto do espiritual, do externo e do interno simultaneamente, lembrando que estou falando de uma perspectiva psicológica, o sentido psicológico que a alquimia apresenta diante do tema proposto.


Diante dessas transformações mencionadas, identifica-se vários processos alquímicos, fases de transformação, como a nigredo (preto, obscuridade, desprazer, dúvida, confusão, enigma, aflição, questionamento), a albedo (branco, prata, translúcido, esclarecimento, racionalização, ponderação, tranquilização, entendimento) e por fim a rubedo (vermelho, sangue, apaixonamento, corporização, compreensão, integração, iluminação, ouro). O que pretendo focar aqui é justamente o processo do amarelo, que fica entre a albedo e a rubedo, conhecido como citracio ou citrinitas, aquele que transforma a prata em ouro.


"O amarelo significa um tipo específico de mudança, geralmente para pior: folhas secas, páginas amareladas num livro [...] O processo do tempo revela-se como um amarelecimento. Os alquimistas falaram dele como 'putrefação' e 'corrupção'." (Hillman, pg. 313, 2011)

O amarelar está ligado com o "despertar", diante da razão branca e clara da albedo, essa que marca com a branquitude a junção de todas as cores, assim se dá a sensação de entendimento, porém, é um momento de abstração e idealismo, falta implicação, falta cor, cheiro, gosto, tempero, calor, é tudo branco e claro demais ao ponto de cegar. É diante disso que o amarelo vai trazer uma corporificação, o despertar diante dessa postura tão inócua e translúcida que a pura razão proporciona. A albedo é a aquisição do conhecimento e a citrinitas é a responsabilização de tal conhecimento.


"Em suma, durante a nigredo há dor e ignorância; sofremos sem a ajuda do conhecimento. Durante a albedo a dor cessa, tendo sido abençoada pela reflexão e pela compreensão. O amarelo traz a dor do próprio conhecimento. A alma sofre sua própria compreensão." (Hillman, pg. 328, 2011)

Estamos passando por processos de transformação constantemente, de todas as maneiras e em todos os aspectos, seja na nossa vida profissional, relacionamentos amorosos, relação com a família, com a cultura, sexualidade, e em cada um desses (e tantos outros) aspectos nós lidamos com todos esses processos alquímicos: passamos pela dúvida, o descontentamento, a frustração, a reflexão, a racionalização, a compreensão. Mas de nada adianta se não tomamos essas experiências para nós, validarmos como algo singularmente nosso e nos implicarmos diante da relação com o outro, o diferente.


"O branco recusa-se a ser amarelado. Parece um estrago. O amarelecimento apodrece a perfeição. O branco é frio, autocontido; o amarelo é quente, cheiroso, terreno, masculino, ativo; [...] o amarelecimento do branco é como leite virando queijo." (Hillman, pg. 324, 2011)

Ou seja, diante de nossos caminhos, não basta sofrer e duvidar (nigredo) e depois refletir, entender (albedo) e por aí ficar. Permanecer na branquitude ofusca a visão, a alma se dilui em si mesma e perde sua essência, suas cores, seus cheiros, toda a sua especificidade que torna cada um desses aspectos algo singular para cada um de nós. Precisa-se dar corpo a esse entendimento, responsabilizar-se por ele (citrinitas), engordá-lo, temperá-lo, apaixoná-lo, como um amarelar do caminho.


Esse amarelar nem sempre é algo agradável, pois nos tira do conforto esclarecido, ideal e narcisista da albedo prateada e passa pelo amarelecimento, essa corrupção, apodrecimento e envelhecimento do espelho reflexivo, não mais refletindo a nós mesmos mas o que está além do espelho, ou seja, o Outro.


É quando não apenas entendemos que somos abusivos, mas buscamos mudar nosso comportamento diante do mundo. É quando não apenas entendemos que amamos, mas buscamos amar. Não pensar reflexivamente somente, mas pensar de forma implicada com a psique, com a nossa subjetividade e também a subjetividade do Outro. Juntando a razão reflexiva lunar da prata com a paixão solar e radiante do citracio, temos a integração do frio e quente, feminino e masculino, a prata que se torna ouro. Processo esse que, sem dúvidas, acarreta muita morte na alma, encontrando novos caminhos para que a vida possa se fazer presente, agora, diante da morte.

"Então, claramente, o amarelecimento é mais do que um simples estrago no branco. É também sua iluminação mais brilhante, mais vivificante, uma claridade mais rica e expansiva." (Hillman, pg. 325, 2011)

Se a morte se faz presente em nossas fantasias, o que ela está buscando expressar? Quem procura o morrer em nós? A morte de uma relação, a morte de um ideal, a morte de um sentimento, a morte de uma fantasia? Ao passarmos pelo amarelamento, singularizamos nossas fantasias, a alma começa a olhar para além de si mesma, além do espelho narcísico, estende seu olhar para o mundo, vê com mais compreensão e compaixão o outro, pois faz o mesmo consigo. Assim, nasce a vontade de compartilhar suas experiências, agora que se tem cor, cheiro, gosto, calor. O amarelo se torna então reluzente, radiante, dourado, é transformado no verdadeiro ouro.


Esse ouro que é amar(elo).


Kauê Luiz Natario David


Diretor da Liga Junguiana

Psicólogo no espaço Archés Psicologia

Pós Graduando em Psicologia Analítica na Unibrasil.


HILLMAN, James. Suicídio e Alma. Petrópolis, RJ: Ed. Vozes, 2011. – (Coleção Reflexões Junguianas)

HILLMAN, James. Psicologia Alquímica. Petrópolis, RJ: Ed. Vozes, 2011. – (Coleção Reflexões Junguianas)

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