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(Pã)demia

Atualizado: 29 de nov. de 2022

São tempos difíceis. Tempo de vulnerabilidade, fragilidade, mortalidade e desespero. Diante da pandemia que assola nosso mundo nos dias de hoje, temos vivido, fundamentalmente, uma experiência de medo. Os números aumentam diariamente, seja de infectados, mortes ou recuperados, mas também o número de pessoas procurando todo tipo de terapia devido à constantes crises de ansiedade, epísódios de pânico e depressão profunda. Nossa consciência, até então solar, potente e individualizada, já não pode fugir do pânico coletivo externo/interno. O pânico esta instaurado, um pesadelo que se faz presente diante do nosso retorno solitário às grutas e cavernas da alma. Diante disso, nada mais justo do que falarmos sobre Pã, ou pelo menos, alguns de seus aspectos.


O deus selvagem dos bosques, das grutas, das cavernas, deus solitário, peludo, um bode com chifres e cascos, associado como o deus da própria natureza, dos instintos e do primitivo, da corporificação e do não-civilizado. Músico, tocador de flauta e de acordo com Hillman (2015) "estupro, masturbação, pânico noturno, sedução das ninfas" (pg. 23) seriam alguns dos fenômenos psíquicos relacionados à narrativa de Pã que permeia nosso dia a dia.


Rei dos sátiros, amado por Dioníso, Pã tem origens desconhecidas, alguns dizem ser filho de Zeus, outros de Hermes, entre tantos outros deuses, isso implica não só a origem desconhecida (inconsciente) mas tembém que o Pã(nico) pode se originar de qualquer lugar, sempre envolto de mistério. Da mesma forma, as atividades sexuais, os desejos carnais, a selvageria humana é uma narrativa do deus, essa muito reprimida diante de uma sociedade cristã e positivista, onde a figura do deus é associada ao Diabo, este que traz os aspectos humanos tidos pelo cristianismo como os mais sombrios e obscuros. Apesar disso, também é o medo que muitas vezes nos protege, nos faz entrar em fuga, ficar trancados em casa de quarentena, como se estivessemos isolados dentro de uma caverna do rei sátiro, protegidos por ele.


"Pã é, ao mesmo tempo, protetor e destruidor, e estes dois aspectos se apresentam à psique em estreita aproximação." (Hillman, pg. 36)

Por ser um deus amado por Dioníso, deus da loucura e das festas, por Afrodite, deusa da sedução, beleza e sexualidade, Pã tem um ligação muito grande com a luxúria e os prazeres da carne, um ser comelão e beberrão, uma característica marcante da sua espécie, os sátiros, que seriam o par oposto das ninfas, espíritos femininos delicados, belos, puros e imaculados.

Em breve falaremos mais disso, mas antes, aqui já podemos encontrar narrativas presentes nos dias de hoje diante da pandemia, pessoas bebendo e comendo desregularmente em suas casas, tomadas por impetos sexuais violentos, furando quarentena para ir ver o crush, marcando de beber na casa dos amigos, indo em baladas clandestinas com aglomeração de 500 pessoas, buscando experiências carnais, físicas, corpóreas e também que vão contra a consciência de pureza do "fique em casa", tendo impulsos viscerais que acompanham do sentimento de culpa e vergonha, tal qual o ato de masturbação o qual o deus é tido como o criador. Estão seduzidas pela música do bode flautista, o deus da masturbação, do auto prazer, como também amedrontadas pelo pânico que o monstro inflige, com medo de ficarem dentro de suas casas, as grutas e cavernas do deus-bode. É um deus medonho e igualmente sedutor.


Há aqueles também que negam o deus, negam sua voracidade e violência pandêmica, buscando se manter na ingenuidade das ninfas imaculadas, sem o toque do medo, assumindo uma postura negacionista, vivendo como se nada estivesse acontecendo, com um discurso positivista de que tudo ficará bem, que o histórico de atleta nos blinda e o remédio mágico irá nos salvar. Um sujeito sem medo é um sujeito sem relação com Pã, e aquele que não se relaciona com o bode do medo, podemos chamar de paranoico, pois "o pânico e a paranoia podem ser inversamente proporcionais." (Hillman, pg. 59), a terapia do medo nos leva para fora das nossas defesas paranoicas, fora dos muros da cidade do ego e nos coloca nas florestas, cavernas e grutas, domínios de Pã, onde a ingenuidade cândida da consciência será violada pelo medo inconsciente.


O deus esta fundamentalmente, o tempo todo, em busca de estuprar as ninfas. O estupro é um tema recorrente na mitologia grega, não é exclusividade de Pã. Ninfas são consciências frágeis, inocentes, ingênuas, cândidas, pouco corporificadas, astrais demais. Pã é aquele que vai estuprar, violar, violentar essas consciências inocentes, ingênuas, que pensam que a morte é adiável, que a saúde é inabalável e nos protege de qualquer malefício que possa recair sobre nosso corpo. A pandemia é esse estado de consciência, uma ingenuidade estuprada, a ingenuidade de achar que a ciência, dinheiro e tecnologia resolverá tudo. Sairemos disso tudo mastigados, violentados, de narcisismo rasgado, soberba esmagada.


"A natureza de Pã não é um presente idílico para os olhos, algo que se possa passar batido, ou junto ao qual aguardar o retorno da candura." (Hillman, pg. 37)

Somos tanto as ninfas quanto Pã, ingenuidade e medo selvagem se inter-relacionando constantemente. Quão mais negado um deus é, mais revoltado ele fica, diante de uma cultura positivista, um espírito cultural da ausência do medo, Pã não tem lugar de expressão. Lembremos aqui que o medo é uma das expressões humanas mais arcaicas, primordiais, reais e verdadeiras da nossa espécie. O que será de nós, num mundo onde não podemos sentir medo, pânico, desespero, vulnerabilidade, morte? Estaremos provocando a ira de Pã. Ira essa que nos coloca diante do deus, nos faz retornar ao instinto primitivo, o retorno da natureza recalcada, agora vem como sintoma, como um pesadelo.


"No pesadelo, a natureza recalcada retorna, tao próxima, tão real que não poderíamos fazer mais do que reagir a ela naturalmente, isto é, nos tornando totalmente físicos e possuídos por Pã, urrando pedindo por luz, conforto, contato." (Hillman, pg. 45)

Onde não encontram expressão, tornam-se fobias, tal qual em Atenas, quando fora erguido um santuário ao deus Pã, que ficava próximo a praça pública, onde havia assembleias públicas onde se juntavam grande número de pessoas (ágora). Por ali passava muita gente, as quais apresentavam muito medo (phobos) em relação a esse lugar, por ser templo do deus. A origem do termo agorafobia (medo de lugares públicos) vem daí, da relação com Pã, levando a pessoa a não frequentar lugares onde há aglomeração de pessoas. Aqueles que aglomeram, portanto, estão em negação total da presença do deus, algo, como já citado anteriormente, muito perigoso.


Ao dar expressão às experiencias de Pã, vivenciamos psiquicamente as narrativas do deus e assim podemos encontrar novas maneiras de relação diante do medo. Só podemos esperar que Eros, deus da relação, da ligação, o vinculador possa nos reconectar com Pã e assim possamos, de maneira erotizada, nos relacionar de uma maneira menos reprimida e mais imaginal com o medo e tudo o que acarreta. Precisamos lembrar que todas essas experiências, vistas pelo nosso ego de maneira patologizada e, logo, reprimidas e escanteadas, são experiências psíquicas como todas as outras e necessitam de espaço de expressão diante de nossas experiências.


"Tal como o amor, o medo pode tornar-se um chamado à consciência; encontramos o inconsciente, o desconhecido, o numinoso e o incontrolável quando mantemos contato com o medo, que eleva o pânico institual e cego da ovelha perante o terror sagaz, astuto e reverencial do pastor." (Hillman, pg 58)



Kauê Luiz Natario David


Diretor da Liga Junguiana

Psicólogo no espaço Archés Psicologia

Pós Graduando em Psicologia Analítica na Unibrasil.


HILLMAN, James. Pã e o pesadelo. São Paulo: Ed. Paulus, 2015. – (Coleção Amor e Psique)

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