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Personificar

Quando falamos de “alma” ou “psique”, falamos como sujeito e não objeto, implicando uma subjetividade e intencionalidade na palavra, dando uma dimensão totalmente diferente do que a mera linguística. A palavra assume uma consciência própria, torna-se um ente diferenciado e autônomo frente ao ego, uma personificação.


Pegamo-nos falando cotidianamente frases como: “esse meu Estresse ainda vai me matar”; “a Ansiedade faz um mau enorme para a minha Saúde”; “a Depressão é terrível, faz eu sentir o Vazio que há em mim”; “a Solidão é o meu maior inimigo.”. Percebam como todas essas palavras tem, além de um peso, um distanciamento, uma separação do ego, do sujeito identificado como “eu” e, apesar de muitas vezes serem expressas como fazendo parte desse “eu”, ao mesmo tempo não são dependentes do mesmo, apresentam autonomia frente a tal.


A dificuldade de entender o conceito de personificação é justamente pela visão moderna que se tem de sujeito, no caso, tudo aquilo que se resume ao ego, ao humano, apenas aquilo que é vivo, “a apenas estas é permitido ser sujeito, ser agente, ter consciência e alma” (Hillman, 2010, p.39). Tal concepção tem grande influência da religião cristã, a qual identifica a psique com o ego; a psicologia cartesiana, que divide o universo entre vivos e mortos, “não há espaço para nada intermediário, ambíguo e metafórico.”. (Hillman, 2010, p.40).


Devido a isso, a própria psicologia e suas psicoterapias se veem perante tarefas morais de integrações de personalidade (singular), fortalecimento egoico, suprimindo qualquer diversificação de personalidades (plural), diferenciações e vivificações das mesmas, com isso demonstrando que também a psicologia tem problemas com as personificações, reduzindo-as à mera semelhança e proveniência do ego, apenas projeções, “não acreditamos que pessoas imaginarias possam ser como se apresentam, como sujeitos psicológicos válidos com vontades e sentimentos como os nossos, mas não redutíveis aos nossos.” (Hillman, 2010, p.40)


Isso nos des-almou, fazendo uma psicologia que nega a autonomia das imagens, sua diversidade, visando repressão ou integração dos fenômenos psíquicos para com a personalidade egocentrada. Tudo aquilo (vozes, sentimentos, intenções, comportamentos) que não controlo com minha vontade, não compreendo com minha razão são fenômenos negativos, estranhos e psicopatológicos.


Toda a minha subjetividade e toda minha interioridade precisam literalmente ser minhas, propriedade de minha personalidade egoica consciente. Na melhor hipótese, nós temos alma; mas ninguém diz que somos alma. A psicologia nem mesmo usa o termo alma: refere-se a uma pessoa como um self ou um ego. (Hillman, 2010, p.41)

Tal visão moderna arruinou nossa imaginação, nosso fazer alma enquanto poesia, mas nesse texto, seguindo Hillman, buscamos encontrar uma nova maneira (ou refinar uma velha), de revivificar nossas relações com o mundo a nossa volta, de irmos ao encontro de nossa fragmentação individual, nossos muitos lugares e muitas vozes, e de encorajar a imaginação a mostrar todas as suas formas brilhantes. Não mais ver a Ansiedade, Depressão, Solidão, Vazio, Saúde e tantas outras Imagens como simples projeções do ego, fenômenos compensatórios da psique ou avisos divinos do self.

Nosso desejo é salvar os fenômenos da psique imaginal. (Hillman, 2010, p.42)

É preciso explorar o personificar para darmos expressão imaginal, metafórica aos conteúdos da alma e não os personalismos literais os quais enrijecem e empobrecem toda e qualquer expressão anímica, remetendo tudo ao ego humano.


A psicologia tomou a metáfora do personificar e a literalizou numa ontologia de pessoas. Nós personalizamos a alma, enfiando-a toda no ser humano. (Hillman, 2010, p.124)

O que pode nos salvar desse literalismo? Hillman responde: os sintomas. Mas isso, esclareceremos melhor no próximo texto.


Eis o final desse pequeno e singelo texto sobre o primeiro capítulo do livro referenciado, em breve os próximos capítulos serão trazidos aqui, espero eu que de maneira igualmente, se não ainda mais singela.


HILLMAN, James. Re-vendo a Psicologia. Petrópolis, RJ: Ed. Vozes, 2010. – (Coleção Reflexões Junguianas)

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