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Literatura e Psicologia: reflexões adjacentes

Atualizado: 20 de out. de 2019

O uso literário da língua terá sempre uma tendência para a deformação Miguel Sanches Neto, 2015, p. 85

Miguel Sanches Neto, em suas crônicas reunidas "Um menino toca flauta no metro", traz reflexões diárias e atemporais do cerne de sua atuação de leitor profissional e escritor medíocre. A crônica que nomeia a reunião de suas ideias narradas me compeliu a esta escrita. Trata-se de um evento que o escritor argentino Borges testemunhou com admiração nos subsolos do metrô: um garoto que acompanhava seus pais numa viagem e que perguntou a eles, expondo seu anseio na pergunta, "Quanto tempo falta para Palermo?". O garoto não foi respondido e insiste na pergunta, "Quanto falta?". Aspira um ar intrigante e numa terceira vez pergunta com graça, "Quanto flauta para Palermo?" e, termina com alegria: "Quanta flauta?". Sanches, com precisão, diz que assim se constitui "um universo imaginário", pois o garoto "se diverte com sua flauta feita de palavras, com o uso musical da língua, já totalmente esquecido da pergunta inicial" (p. 84), Nesta ocasião, Borges evidencia que o garoto estava descobrindo a literatura, e Sanches antecede: "(...) fazendo a passagem da linguagem informativa para a lúdica" (p. 85), sendo capaz de brincar e se divertir com as possibilidades presentes nas similaridades musicais entre as palavras num ato criativo. Uma brincadeira com os fatos da realidade. "O menino não encontra ressonância para suas perguntas, mas enche o metrô com sons de flauta, e a viagem rotineira e enfadonha se torna um momento mágico" (p. 86, grifo nosso).


Distorcer, deformar a realidade pode ser vista como uma manifestação patológica, porém, pouco se diz como um ato criativo e literário. Sanches afirma: "O uso literário da língua terá sempre uma tendência para a deformação" (p. 85). Tentar ser si-mesmo na época de massas e contrariar padrões de vida normativas “(...) afeta a imagem desejada e maníaca de indivíduos saudáveis, felizes e bem-sucedidos” (ZAZONI; SERBENA, 2011, p. 489), envolve um movimento de distorção da pessoa rumando em direção à sua individualidade. Patologizar-se é ser individualmente distorcido, ou, reconhecer na patologia o movimento de individuação que a psique pacientemente nos incita a (ZAZONI; SERBENA, 2011). Torna-se si mesmo é sentir e aceitar suas próprias deformações no mundo. Ser são na loucura e um louco na sanidade. O garoto ao distorcer, ou melhor, reconhecer a distorção das palavras com a literatura (e com a alma), pôde encontrar e sentir um sentido individualmente mais fecundo que a literalidade da falta – para uma falta literária. Encontrar a paixão – o pathos – que torna a experiência individual e, portanto, deformadora da realidade e consequentemente de si. A distorção o lançou ao mundo ou o mundo se lançou nele distorcendo-o. Enfim, o resultado deste encontro independe da causa originária, pois sua relação é essencialmente dialética. Depois Sanches complementa que utilizar da linguagem corrente na sua versão literária "(...) introduz elementos que não estão a serviço de uma expressão racional, mas passional" (p. 85, grifo nosso). Estar a serviço de algo ou alguém exige que sua totalidade esteja englobada – racional e emocional, isto é, psicologicamente. Portanto contesto com a afirmação posterior de Sanches, em que ao se tratar de si e seu uso das palavras, quando usadas na linguagem literária, estejam "(...) a serviço de mim e eu podia ordená-las ou desordená-las a todo momento", pois muito pelo contrário, você, Miguel, está a serviço da linguagem, são as palavras que podem te ordenar e desordenar passionalmente, psicopatologicamente e inteiramente com a alma – literariamente. Porém, ainda assim, as mesmas estão a serviço de sua individualidade, e eu como leitor agradeço por isso. São as palavras que o tornam indivíduo no mundo e são as mesmas que refletem sua individualidade. É assim que o psicoterapeuta (aquele que serve à alma) (BARCELLOS, 2006) sustenta sua prática através de sua personalidade (JUNG, 2011).


Logo adiante, Sanches irá defender a ideia de que a "literatura é sempre uma atividade solitária", que a linguagem na literatura "(...) não tem a função interativa como prioridade, não serve apenas para nos colocar em contato com o mundo imediato, credenciando-nos a situações comunicativas. É algo independente do meio" (p. 85, grifo nosso). Vejo a necessidade de tentar esmiuçar essa afirmação, pois dizer que a linguagem literária não serve apenas à função de troca de informações (sinais) é evidentemente precisa pelo fato da linguagem jazer no seu arcabouço símbolos. Mas deve-se considerar que é pela falta da atenção dos pais ao garoto que o permite tocar o instrumento que é independente da falta – a flauta. Ver algo enquanto símbolo e reimaginado é estar entrelaçado com o mundo e no objeto que se observa, envolve estar individualmente presente no mundo. O radical grego da palavra símbolo “(...) indica ‘algo entrelaçado, condensado (...)” (JACOBI, 2016, p. 114). A consciência é demasiada restrita por si só para perceber todos os mais variados sentidos da alma – seus símbolos. As possibilidades literárias da língua e a ação da alma são sim capazes de ser o que são independentemente do meio – seus sentidos antecedem nossas percepções sensoriais e racionais – mas não nós humanos. Capturamos com os nossos sentidos da consciência a imagem do todo e o todo da psique. Percebemos inicialmente incompreensão pela imagem, como diz Rubem Alves, "(...) É o defeito que faz a gente pensar" (p. 20, grifo nosso), seja literal ou metaforicamente. O modo como atrelamos simbolicamente nossas experiências é por nenhuma maneira solitária, pois é pelo modo solidário da alma ser que a sentimos, então se re-afirma que a psique é sim solitária, ela independe de sentidos para ser o que é, e são pelos os nossos sentidos que a testemunhamos, isto é, pela sua solidariedade (HILLMAN, 2018). A falta fez o garoto testemunhar a arte imagética e metafórica da psique diante da falta. O garoto, ao invés de realizar uma atividade solitária, realizou um ato individual simbolizando junto ao mundo as possibilidades musicais que já existiam – o sentido já existe – e o mesmo não conservou somente para si, Borges estava lá para ouvir, ver, escrever e publicar sobre o ocorrido, tanto quanto eu e principalmente o Miguel ao escrever sua crônica. A psique nos faz solidários através de sua dinâmica solitária capturando sentidos e nos retornando a re-sentir os sentidos. A psique é sempre vivenciada individualmente, enquanto a mesma seja coletiva – como um símbolo, ou metáfora básica, a alma será solitária/solidária.


Neste texto propus um olhar psicológico ao fato presenciado por Borges e na reflexão de Miguel Sanches Neto – uma reflexão adjacente.


Em A prática da psicoterapia (2011), Jung, ao falar de realidade psíquica, se coloca humildemente enquanto teórico e humano como um porta-voz desta realidade atemporal da psique, da qual perpassa pela história e se ressoa através de nós, e da qual ele foi testemunho, pois sua rica colaboração trata-se meramente do testemunho da alma (imagem) que ele, de maneira intensa, ética, científica e solidária, nos apresentou. "A linguagem não pode ficar restrita à funcionalidade, ela é também o caminho para a alegria conquistada solitariamente" (p. 87). Como dito anteriormente, proponho uma re-visão: A linguagem não pode ficar restrita à funcionalidade, ela é também o caminho para a alegria conquistada individualmente, afinal, nós somos indivíduos do mundo, no mundo. Temos mais diversidade sendo no mundo indivíduos e distorcidos; sendo uma imaginação viva e distorcida na e da realidade. Seres literários que vivem da literatura e não para literatura, como afirmou Sanches na crônica “Viver de poesia”. A conquista individual é de alegria solidária, de conquista igualmente para o mundo.


Miguel, sua individualidade solidária me distorceu a ponto de atingir as fervuras mais apaixonantes e difíceis de se manifestarem em mim – a escrita solidária. Sua escrita está no eterno e ampliando a diversidade da experiência individual, como o garoto que fez da falta uma música de flauta, tornando a falta em instrumento de sopro, em instrumento da alma (detalhe: os instrumentos musicais sempre possibilitam compartilhar o que ressoam, são todos solidários). Novamente, Miguel, obrigado pela sua literatura.


O uso individual da vida terá sempre uma tendência para a deformação.


 

Victor B. S. Castro Estudante do 6º período de Psicologia na Faculdades Pequeno Príncipe

Outubro/2019



Um agradecimento especial à minha psicoterapeuta Kassilin, quem possibilitou a transformação do solitário em solidário.



REFERÊNCIAS


ALVES, R. Filosofia da ciência. São Paulo: Ars Poética, 1996.

BARCELLOS, G. Vôos e raízes: ensaios sobre imaginação, arte e psicologia arquetípica. São Paulo: Ágora, 2006.

HILLMAN, J. Uma investigação sobre a imagem. Petrópolis: Vozes, 2018

JACOBI, L. Complexo, arquétipo e símbolo na Psicologia de C. G. Jung. (Trad. Milton Camargo Mota). Petrópolis: Vozes, 2016.

JUNG, C. G. A prática da psicoterapia: contribuições ao problema da psicoterapia e à psicologia da transferência. Petrópolis: Vozes, 2011.

NETO, M. S. Um menino toca flauta no metrô. Ponta Grossa: Container Edições, 2015.

ZANONI, A. P.; SERBENA, C. A. A psicopatologia como uma experiência da alma. Rev. latinoam. psicopatol. fundam., São Paulo , v. 14, n. 3, p. 485-498, Sept. 2011 . Available from <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1415-

47142011000300006&lng=en&nrm=iso>. access on 07 June 2019. http://dx.doi.org/10.1590/S1415-47142011000300006



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