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O Arquétipo Trickster

Atualizado: 12 de nov. de 2020

Após algumas inspirações, decidi falar sobre esse que é um dos arquétipos que mais chama a atenção dentro de estudos psicológicos e também antropológicos. Vamos falar um pouco hoje sobre o contorno arquetípico do trickster e suas características nas mitologias e breves correlações com a psicoterapia analítica.



"O "trickster" é um ser originário "cósmico", de natureza divino-animal, por um lado, superior ao homem, graças à sua qualidade sobre-humana e, por outro, inferior a ele, devido à sua insensatez inconsciente." (Jung, OC, Vol 9/1)

Muitas vezes retratado de um palhaço a um sábio, o trickster se faz presente em diversas mitologias e folclores das mais diversas culturas. Com sua ironia, senso de humor e astúcia, ele distorce tudo aquilo que se imagina ser possível e apresenta uma nova ordem através de sua figura muitas vezes caótica. Como a carta O Louco do tarô, é alguém que vê o mundo de cabeça para baixo, uma lógica invertida, percebe as coisas como ninguém mais, conseguindo ir e vir dos lugares mais inusitados, sendo alguém que transita com tranquilidade entre o submundo e caminha por travessias impossíveis, um quebrador/formador de regras, sempre levando as histórias ao inesperado em toda narrativa que se faz presente.


"...o "trickster" continua a ser uma fonte de divertimento que se prolonga através das civilizações, sendo reconhecível nas figuras carnavalescas de um polichinelo e de um palhaço." (Jung, OC, Vol 9/1)


Estamos falando de um personagem plural e multifacetado; tanto que outro de seus aspectos é o de ser um transmorfo, ou seja, um ser capaz de assumir várias formas, seja de um homem, mulher, criança, velho ou animal, como encontramos, por exemplo, na mitologia nórdica e seu deus Loki, o deus da mentira, trapaça e magia, tendo assumido várias formas em suas muitas histórias com a intenção de gerar certos acontecimentos em determinados contextos, todos com a intenção de provocar mudanças, chocar o público, gerar conexão com o novo. Muitos personagens em outras culturas tem a forma animal, como é o caso do Coiote, da Raposa e do Corvo.


“O trickster é o idiota criativo, portanto, o tolo sábio, o bebê de cabelos grisalhos, o travesti, o que profere profanidades sagradas.” (HYDE, Lewis, p. 17)

Segue sua própria linha de conduta, vivencia seus desejos, faz suas travessuras, envolve-se em situações complicadíssimas por causa disso, que resolve não com a força do herói, mas sua astúcia e malandragem, por isso o mesmo é considerado em certas literaturas como um "herói negativo", longe de ser um cavaleiro nobre e honrado. Aqui já podemos começar a inferir a importância de experiências tricksters dentro da clínica, pois são as inversões e torções que mostram à rigidez do ego que nem tudo pode/deve ser do jeito que o "eu" almeja. Muitas vezes é justamente o sintoma, aquilo que nos aflige, mais uma armadilha trickster da psique que nos coloca em uma posição inusitada, nos fazendo perceber as coisas por novas perspectivas.



Se observarmos exemplos de personagens tricksters de diversas mitologias, como Exu na mitologia Yorubá, Ganesha na mitologia Hindu, Tote na mitologia egípcia, Hermes na mitologia grega, são deuses ligados ao conhecimento, sabedoria, estradas, caminhos, sorte, viagens, encruzilhadas e comunicação. Psicologicamente falando, o fenômeno trickster é aquele que nos coloca diante de nossas fronteiras egoicas, comunica os aspectos da sombra psíquica, nos levando ao encontro do Outro e propondo diálogo (amistoso ou não), possibilitando uma transcendência, um ir além dos limiares conhecidos pela consciência, se nos empenharmos a debruçar sob os conteúdos apresentados, muitas vezes, de maneira obscena.


“O trickster é a corporificação mítica da ambiguidade e ambivalência, da dubiedade e da duplicidade, da contradição e do paradoxo.” (HYDE, Lewis, p. 17)

Quando sofremos de ansiedade ou depressão, a primeira reação do ego é buscar resolver e extirpar toda a qualquer sensação tida como negativa, como o herói que quer derrotar a todos os seus inimigos. Mas se toda expressão psíquica diz algo sobre a psique, o que nossos sintomas e dores estariam falando da nossa alma? Seria essa mais uma armadilha do trickster? Aqui, podemos apostar que sim, pois o trickster nos lembra que existe necessidade em tais expressões desprazerosas, que diante da busca por resoluções, devemos primeiro nos questionar, olhar por outras vias, adotar uma perspectiva mais cômica, lúdica, humorada, para reconhecer e acolher a dor que sentimos para assim tomarmos um novo rumo, adotar uma nova lógica, algo que somente essa ruptura proporciona, essa quebra de paradigma que os aspectos tricksters da psique é capaz de realizar.


Diante de encruzilhadas psíquicas, esses movimentos trickster estão no dia a dia, seja num tropeço que nos faz atrasar para o trabalho e tal atraso reverbera numa série de consequências, ou mesmo a chave que esquecemos e temos que voltar para casa e no caminho vemos lugares antes não vistos, cruzamos com pessoas novas, chegamos em casa e encontramos algo perdido enquanto procuramos a chave, isso tudo é a alma do mundo nos mostrando como não temos controle algum sob a vida, mas a vida tem sob nós e como podemos (e não podemos) lidar com isso, diante dessas travessuras trickster da alma.


Sabendo que o trickster, em toda sua errância, segue uma lógica própria, jamais a estabelecida pela norma vigente, pode-se dizer que ele não é um fruto do meio mas, sim, uma extensão da psique coletiva; ele é justamente o agente que quebra com a norma do meio, questiona com toda a sua sagacidade aquilo que se conhece conscientemente. Um fato importante é relatar que muitos dos personagens tricksters são retratados como homens. São raríssimas as personagens tricksters femininas, um exemplo seria no folclore japonês a raposa Kitsune, animal capaz de assumir forma humana, normalmente belas mulheres que enganam as pessoas e também podem ser fiéis guardiãs de templos sagrados.


"Todos os tricksters-padrão são masculinos. Há três razões relacionadas para que isso aconteça. Primeiro, esses tricksters podem pertencer a mitologias patriarcais [...] Em segundo lugar, pode ser que haja um problema com o próprio padrão; pode haver tricksters femininas que foram simplesmente ignoradas. Por fim, pode ser que as histórias de trickster articulem alguma distinção entre homens e mulheres, de forma que até mesmo em um cenário matriarcal essa figura seria masculina." (HYDE, Lewis, p. 479)

Importante destacar que muitos personagens podem ter atitudes e momentos tricksters mas, ainda assim, não são uma personificação trickster, da mesma forma que um sujeito pode ter um momento de agressividade, mas isso não o torna uma pessoa predominantemente agressiva.


Por exemplo, quando Hércules está realizando seus famosos 12 trabalhos, o penúltimo requer que o herói consiga uma maçã, algo que demanda o favor do titã Atlas, que segura o mundo em suas costas. Hércules faz um acordo com Atlas, enquanto o titã pega a maçã, Hércules o substitui segurando o mundo. Ao retornar, Atlas decide que não entregará a maçã pois se vê finalmente livre de seu castigo, mas Hércules é astuto e o engana, fazendo com que o titã retorne a sua tarefa, conseguindo o que quer e seguindo com sua jornada.


Não é por esse ato singular que Hércules se torna um trickster, mas mostra que este arquétipo é um aspecto que habita o próprio herói, faz parte da realidade da psique coletiva. E já que falamos de psique coletiva, encontramos tricksters em praticamente qualquer narrativa, como o Saci Pererê e sua astúcia no folclore tupi-guarani; Zé Pelintra e sua malandragem como figura popular afro-brasileira.


Na própria cultura pop contemporânea, personagens como o Pernalonga que sempre se safa dos problemas; Jack Sparrow com toda a sua esperteza e imprevisibilidade; Tom Bombadill em Senhor dos Anéis e suas habilidades sobrenaturais; Deadpool e sua amoralidade e constante quebra da quarta parede.


Popularmente associa-se também a figura do Coringa, vilão do universo do Batman, como um exemplo de trickster, mas isso já é algo que gostaria de abrir para discussão neste texto.


Agradeço por terem lido até aqui, finalizo com uma última citação que dialoga perfeitamente com o vídeo na sequência, aonde vemos o deus africano Anansí, senhor das histórias, dando o exemplo de como um trickster age dentro de uma narrativa. Aproveitem!


“Quando a concepção de alguém o deixa incapaz de agir, o trickster surgirá para sugerir uma ação amoral, algo certo/errado que porá a vida novamente em marcha.” (HYDE, Lewis, p. 17)



Kauê Luiz Natario David

Diretor da Liga Junguiana

Psicólogo no espaço Archés Psicologia

Pós Graduando em Psicologia Analítica na Unibrasil.


HYDE, Lewis. A astúcia cria o mundo: trapaça, mito e arte. 1. ed. RJ: Civilização Brasileira, 2017.

JUNG, C. G. Os Arquétipos e o Inconsciente Coletivo. 6. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2011.

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